terça-feira, 17 de abril de 2007

Espírito Moçambicano

Somos o que vivemos.
Logo, as pessoas com quem contactamos em casa, na rua, no trabalho, na escola, no restaurante, todos os dias, esporadicamente, ou apenas uma vez, todas elas fazem parte da nossa vida.
Umas mais do que outras, sem nos apercebermos, mesmo sem falarmos com todas, as pessoas que cruzam o nosso caminho constituem o cenário da nossa vida e, por isso, inevitavelmente acabam por nos tocar.
À pouco tempo ouvi numa série televisiva uma expressão que me marcou: "A vida é feita de salas." Dá que pensar, não dá?

Sempre vivi a olhar para o futuro, mas afinal não é assim que vivem as sociedades ocidentais? O objectivo de cada é sempre tentar atingir algo. As pessoas estão tão preocupadas em ir de A a C que até se esquecem da beleza das coisas simples, sem viverem realmente os entretantos. E o tempo não anda para trás...

Por vezes dou por mim a imaginar-me deitado numa cama, daqui a muitos anos, com idade avançada, e a recordar a minha vida e as opções que tomei.
O meu maior medo é nesse momento chegar à conclusão do quão cobarde fui em não ter seguido os meus sonhos.
A vida é a nossa maior viagem.
As opções que tomamos, as pessoas que escolhemos para estar, os lugares onde vivemos, tudo é vivido apenas uma vez.
Esta é a verdadeira magia da vida.

Actualmente luto para abrandar o ritmo e conseguir apreciar o presente. Não tem sido fácil.
Tenho uma filosofia de vida que me faz procurar evoluir interiormente, analisar os meus erros e tentar melhorar.
Mas sempre tentando ser eu próprio.
Ainda hoje luto pelos meus sonhos.
Pois a verdadeira emoção da vida é sermos nós próprios, iguais a nós mesmos e fazendo o que gostamos.
Não apenas mais alguém, igual a outros tantos alguéns.
Sou assim, porque EU me sinto bem. Tal como na famosa frase do Boom: Why "B" normal when you can "B" yourself...
Todos temos os nossos defeitos, mas certamente haverá sempre alguém neste mundo disposto a conhecer-nos verdadeiramente para além da nossa camuflagem rotineira.
Por exemplo, hoje consigo reconhecer que tenho um feitio extremamente difícil.
Quando em conflito tenho dificuldade em fazer passar a minha mensagem e muitos me viram as costas.
Já cheguei a duvidar de mim próprio: "Devo ser mesmo intratável!"
Felizmente os meus amigos conhecem bem o meu mau feitio, mas também conhecem o meu coração e a minha sinceridade.
Lembrar-me deles dá-me alento, renova a minha auto-estima e energia.

Quando olho para uma criança vejo um ser inocente.
Todos fomos crianças um dia.
Então, em que parte da nossa viagem decidimos mudar, deixar de perseguir os nossos sonhos, e de olhar para as outras crianças como apenas mais crianças, tal e qual como nós próprios?

Regressei há mais de um mês e Moçambique ainda bate cá dentro.
Lá, a esmagadora maioria das pessoas vive o dia-a-dia tentando apenas sobreviver. Tanta miséria...
E os brancos ali ao lado com tudo em demasia.

Já tive esta discussão com colegas que também lá estiveram, e outros que ainda lá estão, e tenho uma visão diferente de Moçambique.
De uma forma geral, e até mesmo inadvertidamente, o branco quando chega a África assume imediatamente uma posição de superioridade.
Quem o negar não quer ver o que está à vista.
Eu próprio consegui reconhecer certos sintomas em mim.
Mas penso ser uma reacção natural quando se é educado por uma cultura ocidental.

A verdade é que a dada altura os meus olhos assistiam a pessoas a serem maltratadas psicológica e emocionalmente.
Aqui em Portugal nenhum de nós o admitiria, fosse a quem fosse.
Tais situações eram mais evidentes nos restaurantes, onde, pela situação que ali se impõe, existe logo à partida uma certa relação de serventia do empregado para com o cliente. Mas estas situações eram apenas o cartão de visita para a realidade instalada.

Sim, é verdade que o branco trabalha muito em África, mas será apenas seu o suor que cai na terra?
Não podemos esperar certas atitudes, reacções e sentimentos de quem teve um passado completamente diferente do nosso, já para não falar no presente.

Inocente é o branco quando pensa que o negro africano é ingénuo e de fraca inteligência.
Este é tão astuto que se aproveita do sentimento de superioridade do branco para lhe dar a volta.

Os moçambicanos ainda têm um longo caminho a percorrer, e claro que o homem branco terá um papel fundamental para os guiar. Consegui realmente ver um futuro animador para aquele povo. Espero que pelo caminho não perca a sua identidade e modo de estar, que para mim foi inspirador.

Esta foi a realidade que trouxe comigo de Moçambique: pessoas ricas, com um espírito de abertura muito grande, mesmo com graves necessidades primárias.
Luta pela sobrevivência e afirmação, muita animação e um potencial enorme para o desenvolvimento económico-social, foi o que senti naquela terra de clima extraordinário, praias de sonho e odores característicos.

Para terminar, eis algumas expressões caricatas, que de certa forma ilustram bem o contraste entre a cultura ocidental e a moçambicana:

B - O João já veio?
N - Há-de vir.
-------------------------------
B - O trabalho já está feito?
N - Há-de se fazer.

Este é o espírito moçambicano. ;)

4 comentários:

Unknown disse...

A felicidade está nas pequenas coisas. No nosso dia-a-dia, em qualquer coisa que fazemos, em qualquer lugar, podemos ser felizes. Assim, entendo perfeitamente a tua admiração pelo espírito moçambicano. Eles são livres. Vivem a vida de maneira simples sem estarem "contaminados" pelo consumismo.

13inary disse...

Acho que aos poucos o consumismo já começa a sentir-se em Moçambique.
Ou não fosse a empresa moçambicana de maior sucesso a MCEL (Operador de Comunicações Móveis).

Mas os objectivos que o povo traça são a médio-curto prazo. Assim, o momento presente tem maior intensidade e é apreciado de uma forma relaxada e sem stress.

Ainda vão resistindo aos "perigos consumistas". Quanto mais não seja pelas dificuldades que existem.

O consumismo não tem que ser obrigatoriamente negativo. A não ser que a nossa vida passe a ser planeada em função dele.

Bjs

Catarina disse...

concordei com quase tudo... mas houve uma frase em particular que me saltou à vista e me fez parar.

Quando dizes que a sociedade moçambicana ainda tem muito para aprender e que o branco é crucial para guiar essa evolução, estás, a meu ver, a contradizer tudo o que disseste anteriormente.
Dizer isto é assumir que a cultura dos brancos é realmente superior, que a escolha do percurso deve ser feita pelo branco para chegar a um destino melhor. Será?

Catarina

13inary disse...

Olá, Catarina!

Tens razão, entre as ideias que tentei expressar, esta frase parece ser contraditória.
Digo "parece", porque na verdade não me referia a uma superioridade da cultura dos brancos. Referia-me, antes, à importância dos investimentos que os países ocidentais têm vindo a fazer, no continente africano em geral.
Moçambique é muito pobre e, tal como referi no texto, as pessoas vivem para o dia-a-dia, tentando apenas sobreviver.
No estado actual das coisas, com tantas carências, as empresas estrangeiras têm um papel fundamental na ajuda ao desenvolvimento do país.
Infelizmente, e este é o meu sentimento, achei que estava mais presente o conceito "lucro", do que o de entreajuda, para com este povo onde tantos passam fome.
Por isso escrevi "Sim, é verdade que o branco trabalha muito em África, mas será apenas seu o suor que cai na terra?".
Claro que o objectivo de qualquer empresa é o lucro. Mas, sendo uma empresa uma organização constituída por pessoas, e existindo recursos para tal, não poderiam estas tentar construir algo mais?
Infelizmente, são raras as empresas onde existem gestores humanos, com esta visão e capacidade de tomar decisões para atingir outro tipo de objectivos.
Isto leva-nos as outras problemáticas, existentes nas culturas das grandes empresas, mas isso é outra história...

Obrigado por leres e comentares. ;)